A N N A B E L L E M O R E A U

PESO, 2023
Peso, e proporção
A primeira vez que tive contacto com o trabalho da Annabelle Moreau foi em 2019, na
residência artística AiR 351. Nesse ano, Moreau desenvolvia uma pesquisa em torno da
ideia de temporalidade na relação proporcional com o seu corpo. Uma das obras que
estava a trabalhar, de um conjunto maior de desenhos, materializava, essa ideia de
uma extensão temporal no comprimento de uma folha, na realidade um rolo, com um
desenho com muitos metros de extensão e, na largura dessa folha, a medida do seu
corpo. Esses desenhos, intitulados “Drawing in action” propõem-nos duas questões
imediatas: A primeira prende-se com a observação do desenho que é impossível de
apreender na sua totalidade. A segunda, no meu entender, com uma ideia
performativa inscrita no acto de desenhar e na sua correspondência física com a
exposição e manipulação do desenho, suspenso pelo seu corpo até chão ou, sobre
uma mesa, desenvolvendo-se na sua extensão sobre o mesmo chão, provocando
dobras e acumulações que, sugerindo um movimento sensual, se presentifica como
uma escultura quase cinética.
No desenvolvimento deste trabalho, que opera entre o desenho e a escultura, a
presença do corpo é transformada através de uma figuração geométrica, e
perfeitamente simétrica na posição dos braços da artista, que, poderiam ser
eventualmente as suas pernas. A estes dois elementos juntam-se outros dois
elementos rectilíneos, as pernas de uma mesa que parecem suportar toda a
coreografia que encena esta obra, que rememora uma matriz formal constructivista,
ou, uma memória autorreferencial estreitamente ligada à sua vivência em África, ao
ritual a que o corpo é sujeito entre o animismo e o teísmo.
O movimento do corpo, quase ausente, é assim uma extensão temporal de uma
revisitação da memória e, a gravidade, que o desenrolar do peso do desenho até ao
chão da sala anuncia, é o ponto de partida para as outras obras que compõem esta
exposição, intituladas “Reclining lead 1” e “Reclining lead 2”.
Estas duas obras, construídas em madeira e chumbo parecem, por um lado, opor-se à
subtileza, e aparente leveza, dos longos desenhos sobre papel. Mas por outro lado são
construídas sobre processos semelhantes, diria até replicados, das obras sobre papel.
2
Em primeiro lugar uma questão central neste trabalho, a medida do corpo da artista.
Em segundo lugar, a memória, e assim uma ideia de temporalidade. As lâminas de
chumbo, object trouvé, não são ready mades duchampianos, mas são objectos
encontrados e requalificados na sua forma e função, e são trabalhados, inclusive
cosidos, para representar as medidas do corpo da artista. O chumbo tem uma
presença histórica enquanto material plástico no decorrer do Séc. XX, é pesado, mas é
dúctil, moldável e, neste aspecto, permite fazer uma ponte com a representação
clássica da mulher, sendo, contudo, um material associado ao género masculino.
Citando as reflexões da artista, “o chumbo era usado na saturação do pigmento na
pintura, provocando a sua opacidade e textura suave. Foi um dos principais pigmentos
utilizados nos retratos das deusas reclinadas, tema que permitiu a representação de
nus femininos em pinturas históricas”.
De outro modo, a mesa, é o elemento estrutural, que permanece como memória e
ferramenta do próprio processo de trabalho, e permite moldar a figuração abstracta
que se põe perante o espectador, numa ligação com a linguagem escrita, no título
destas obras, “Reclining lead”, reactivam uma memória visual das figuras femininas
reclinadas.
No trabalho da Annabelle Moreau confrontam-nos com um processo dialógico entre
referências da história da arte ocidental e referências de uma outra história, de
estórias, e de experiências de vida da artista. Deste modo, referir o tempo, a memória,
e o corpo como vectores principais do seu trabalho parece-me ser importante.
Contudo, o seu processo de trabalho é, no meu entender, mais amplo porque integra a
apropriação de elementos materiais e espirituais que transforma as suas obras em
palimpsestos, que se reescrevem continuamente por processos, e metodologias,
associadas e replicadas. Talvez, como um processo associado ao uso medieval de um
pergaminho.
João Silvério
Supported by: João Portugal Ramos Vinhos